quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

"Videira" por Miguel Boieiro



O vizinho Luís era salineiro. Em 1958, os salineiros fizeram uma greve para obterem melhores condições de trabalho e de salário. Os patrões não gostaram e o governo também não. A polícia política invadiu as ruas da vila e o vizinho Luís foi preso. 

A PIDE arrancou-o da cama às quatro da madrugada e encarcerou-o, sem culpa formada, no Aljube durante dois penosos meses. O vizinho Luís era analfabeto mas muito aprendeu no convívio com outros presos políticos. Na prisão encontrava-se também um anarquista francês, pessoa culta disposta a partilhar saberes. O vizinho Luís começou a aprender francês, que na altura era a língua franca por excelência. Quando regressou, o vizinho transmitiu-me muitos conhecimentos que absorvi avidamente. Mais tarde, já na escola secundária o professor de francês, logo na primeira, aula falou de “pomes” e de “oranges”, perguntando se alguém conhecia nomes de outras frutas. O petiz que então eu ainda era, levantou timidamente o braço direito e balbuciou “raisins”. As uvas, na designação gaulesa que o salineiro analfabeto me tinha ensinado, foram a minha coroa de glória nesse dia inesquecível.

Começo assim a falar de uvas, vinhas, cepas, e videiras, mas não de vinhos, cujos teores alcoólicos me podem subir à cabeça e obliterar a limpidez dos pensamentos. Aliás, de vinhos têm os leitores vasta informação sabiamente manejada pelas vias mediáticas da instrumentaria consumista. Todavia, para quem quiser saber das virtudes filosóficas, sociológicas e quiçá culturais da bebida de Baco, recomendo tão-somente a leitura da obra “Tabernas”, primorosamente editada pela Câmara Municipal de Grândola. Mas, por agora, não irei aqui discutir se o vinho é bom ou mau para o bem-estar dos consumidores e apenas me cingirei à videira como notável planta medicinal.



Julga-se que videira é originária do próximo oriente sendo conhecida desde a época neolítica. Daí propagou-se pelos países da bacia mediterrânica e mais tarde por todas as regiões de clima temperado. Atualmente a Vitis vinifera, da família das Vitaceae, agrega mais de cinco mil variedades denominadas castas. É arbusto trepador de tronco retorcido (cepa) e vivaz com folhas palmadas, alternadas e caducas. A planta é semilenhosa e, se não for podada, o que acontece anualmente, pode atingir 30 metros de extensão. De resto, toda a gente conhece as videiras devido aos seus atraentes bagos (uvas) de cores negras, roxas, carmesins ou douradas. O sumo da uva não fermentado é rico em açúcares, proteínas, vitaminas do complexo B, C, P, betacaroteno, ferro, potássio e ácidos orgânicos. As folhas e as sementes (grainhas) possuem importantes flavonóides, pigmentos, taninos e lípidos de elevado interesse medicinal.



O meu saudoso amigo Dr. António Cardoso, ilustre ativista da Sociedade Portuguesa de Naturalogia, não se cansava de gabar os méritos da cura de uvas como um dos melhores meios para depurar o organismo sem o debilitar. Consiste na simples ingestão diária de 1 a 3 kg de uvas bem maduras como único alimento durante, pelo menos, três dias seguidos. Este tratamento proporciona substanciais alívios a quem padece de artritismo, hipertensão, colesterol, doenças renais, obesidade, hemorroidal, afeções hepáticas, anemia, esgotamento, astenia, ansiedade…

O óleo obtido da expressão a frio das grainhas das uvas, para além do seu interesse alimentar, é também aconselhado para reduzir o colesterol LDL e aumentar o HDL, devido à sua riqueza em ácidos gordos polinsaturados.

A seiva da videira, denominada “água de cepas” que se obtém do “choro” dos sarmentos primaveris, possui propriedades anti-inflamatórias e cicatrizantes. Desde remotos tempos tem sido usada para curar problemas cutâneos (eczemas, erupções e irritações várias) e sobretudo, para desinflamar os olhos em situações de conjuntivites, terçóis, blefarites e queratites (inflamações da córnea).



As folhas jovens, não tratadas com agroquímicos, são comestíveis. Na Roménia, Grécia, Turquia e noutros países, preparam-se acepipes deliciosos revestidos pelas parras das videiras. Para tratamento de hemorroidas, frieiras, varizes, cansaço e inchaço das pernas e demais transtornos circulatórios venosos, alcançam-se efeitos benéficos através dos banhos de pés (pedilúvios) com decocção de folhas de videira, alternando águas quentes e frias. Jorge Pamplona Roger na sua enciclopédia “A Saúde pelas Plantas Medicinais” acrescenta que, tomando o “chá”, proporcionado pela decocção das folhas, reforça-se o efeito do citado tratamento (40 a 50 de folhas por litro de água para tomar 3 ou 4 chávenas diariamente antes das principais refeições).

Há ainda uma referência ao pó das folhas secas para inalação a fim de se estancarem as hemorragias nasais.

Com tudo isto, quase nos esquecemos que das uvas também se faz vinho e do vinho se faz vinagre, com comprovadas propriedades antissépticas.



Junho de 2021

Miguel Boieiro

(texto da autoria de Miguel BoieiroVice-presidente da Direção da SPN) 

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